Summary: No circuito heteróclito das escritas de si contemporâneas, vem recrudescendo notavelmente a produção de autoficções. A presença de dados empíricos no interior da ficção, em obras catalogadas como romance , atesta um movimento duplo e simultâneo de apropriação e crítica de estratégias autobiográficas, que coloca na berlinda o território do eu autoevidente. A quebra do pacto referencial, chancelada pelo gênero romanesco, não significa entretanto o domínio absoluto e irrestrito da ficção. Ao acenar para o leitor de dentro da própria obra, impondo sua inarredável presença, o autor impede o leitor de aderir incondicionalmente ao pacto ficcional. Por uma espécie de contaminação recíproca, vida e obra são elevadas ao patamar da indecidibilidade, escapando das cooptações pelas categorias estanques, abalando pressupostos do que, no limite, seriam fato e ficção. No romance K. relato de uma busca, de Bernardo Kucinski, por exemplo, lemos a seguinte advertência a nós endereçada: “Caro leitor: tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu” (KUCINSKI, 2014, p. 8), palavras que reverberam até certo ponto o aviso dado por Roland Barthes na abertura de seu livro Roland Barthes por Roland Barthes: “Tudo isso deve ser considerado como dito por um personagem de romance” (BARTHES, 2003, p. 11).
Esse hibridismo textual refratário às determinações genéricas (nem autobiografia, nem romance, stricto sensu) promove o questionamento do sujeito cartesiano, calcado na crença numa totalidade autossuficiente que daria suporte à construção do eu. O gesto performático do sujeito nas autoficções sublinha o que há de randômico, de impermanente e de arbitrário na tentativa de apreensão de uma imagem do eu, demonstrando que sua figuração é histórica e subordinada a estratégias discursivas, sem qualquer pretensão de decalque de uma essencialidade prévia a ser transposta sem mediação para o texto.
O abandono dessa dimensão metafísica do sujeito converge por sua vez para a desconstrução de mitos que alimentam uma fatia significativa do mercado editorial na forma de autobiografias e biografias, rendendo boas cifras com a promessa de descortino da intimidade e revelação da verdade sobre o sujeito retratado.
Um dos traços recorrentes da autoficção é justamente a afirmação das incertezas sobre a constituição do eu. Em Berkeley em Bellagio (2003), de João Gilberto Noll, por exemplo, o narrador, cujo nome, João, só é revelado ao final da história, indaga acerca de si mesmo: “[...] quem será esse homem aqui que já não se reconhece ao se surpreender de um golpe num imenso espelho ornado em volta de dourados arabescos, um senhor chegando à meia-idade? [...] Quem seria esse homem [...] nascido em abril em Porto Alegre, no hospital Beneficência Portuguesa [...]?” (NOLL, 2003, p. 29; 35-36). Já em Retrato desnatural (diários 2004-2007), de Evando Nascimento, um dos fragmentos constata: “em estado puro ‘eu’ é sempre obtuso, óbvio, mas também inatingível, e querem saber talvez nem exista ‘eu’ mesmo” (NASCIMENTO, 2008, p. 133).
Em alguns casos, o narrador expande as interrogações sobre si, incorporando no bojo de suas reflexões os efeitos provocados por algum acontecimento histórico impactante que atravessa sua história pessoal e impulsiona seu esforço de autoconstrução identitária. Trata-se do narrador que, em vez de buscar erigir-se circunscrevendo a exposição do eu à sua relação com o contexto no qual se insere, expondo, no curso desse movimento autocentrado, as dúvidas e as incertezas sobre suas experiências pessoais, decide fazer o caminho inverso, ao partir de condicionantes externos para se chegar ao pequeno eu, indagando de que forma um determinado evento histórico traumático que, em alguma medida, se inscreve na sua biografia, determina e configura o eu que escreve. A análise de obras assim concebidas integra o escopo deste projeto. Diário da queda, de Michel Laub, por exemplo, narra o impacto da Shoah na vida de três gerações distintas: o avô, sobrevivente dos campos de concentração, o pai, herdeiro direto do trauma paterno, e o filho, responsável pela voz narrativa. Ao se empenhar em resgatar a história de seus descendentes a fim de compreender o papel de Auschwitz em sua própria vida, o narrador tenta ainda, na abordagem do tema, evitar os clichês que saturam o evento-limite, subtraindo-lhe, muitas vezes, sua força mobilizadora:

Eu também não gostaria de falar desse tema. Se há uma coisa que o mundo não precisa é ouvir minhas considerações a respeito. O cinema já se encarregou disso. Os livros já se encarregaram disso. As testemunhas já narraram isso detalhe por detalhe, e há sessenta anos de reportagens e ensaios e análises, gerações de historiadores e filósofos e artistas que dedicaram suas vidas a acrescentar notas de pé de página a esse material [...] (LAUB, 2011, p. 9).

Guardadas as devidas diferenças, também no romance A resistência, de Julián Kuks, Sebastián, o narrador, filho de pais intelectuais de esquerda, obrigados a escapar da ditadura instaurada em seu país de origem – a Argentina –, buscando abrigo no Brasil, empenha-se, por um lado, em reconstituir a história de seu irmão adotado e, por outro lado, em depreender um sentido possível desse momento político nefasto na sua história pessoal.
Em ambos os romances, o narrador escreve tendo como núcleo ordenador do relato um evento traumático. Na história de Laub, o Holocausto enseja um diário endereçado ao filho que vai nascer, enquanto na de Fuks a ditadura argentina exerce um papel crucial no livro que resulta do empreendimento memorialístico. Nos dois romances, o ato de ter um filho emerge significativamente como um gesto de esperança, uma fulguração utópica, a despeito (e por causa) dos efeitos devastadores e irremediáveis provocados pelas feridas históricas a desencorajar a crença num horizonte redentor e auspicioso. Como afirma o narrador de Fuks: “Ter um filho há de ser, sempre, um ato de resistência. Talvez a afirmação da continuidade da vida fosse apenas mais um imperativo ético a ser seguido, mais um modo de se opor à brutalidade do mundo” (FUKS, 2015, p. 42). Palavras que confluem com as reflexões do narrador de Laub: “Ter um filho é deixar para trás a inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e lugares, como se perdesse o sentido falar sobre as maneiras como ela se manifesta na vida de qualquer um, e as maneiras como cada um tenta e consegue se livrar dela” (LAUB, 2011, p. 150).
Tanto no romance de Laub como no de Fuks avulta a questão da distância espaçotemporal interposta entre o evento histórico traumático e o presente do resgate memorialístico. Nenhum dos dois narradores sofreu diretamente a violência do Estado. Ambos escrevem em tempos e lugares distintos daqueles em que os fatos históricos capitais sucederam. E é justamente esse distanciamento que acaba por desencadear reflexões de ordem ética que põem em xeque a autoridade mesma da voz narrativa: “Pode um exílio ser herdado?” (FUKS, 2015, p. 19), pergunta o narrador de Fuks. No caso do narrador de Laub, esse distanciamento é ainda maior, pois o cenário terrível dos campos de concentração nazistas em nada tem a ver com o solo e a temporalidade de onde a escrita brota, ou seja, o Brasil do século XXI. A certa altura do seu diário, o narrador indaga: “Faria diferença se os detalhes do que estou contando são verdade mais de meio século depois de Auschwitz, quando ninguém mais aguenta ouvir falar a respeito, quando até para mim soa ultrapassado escrever algo a respeito, ou essas coisas só têm importância diante das implicações que tiveram na vida de todos ao meu redor?” (LAUB, 2011, p. 101).
Dentre os efeitos perniciosos desse distanciamento espaçotemporal talvez o mais macabro seja a proliferação das teses negacionistas. Essa questão surge, por exemplo, em Os visitantes, de Bernardo Kucinski. O narrador em primeira pessoa, identificado com o autor, recebe a visita de vários personagens do romance anterior, K. relato de uma busca, furiosos e indignados com a forma como o escritor conduziu a história de sua irmã desaparecida. A primeira visitante a bater à sua porta é uma idosa, sobrevivente de Auschwitz, inconformada com os dados “inventados” pelo autor, que teriam o poder de distorcer a realidade dos fatos: “Procurei contemporizar. expliquei que os escritores às vezes se valem de fatos reais para criar uma história, e podem até torcer os fatos, para dar mais força à história. Ela protestou: Torcer os fatos?! Daqui a pouco o senhor escritor vai negar o Holocausto!” (KUCINSKI, 2016, p. 13).
Como problema a ser também investigado nessas e em outras obras, cabe perscrutar o questionamento da autoridade autoral como demonstração de um certo escrúpulo no resgate do passado traumático, bem como a expressão de uma desconfiança da eficácia da ficção literária como mecanismo que contribui para a reescrita da história, o que, no limite, permite a expressão de uma consciência ética do narrador em face dos artifícios usados na recriação da realidade: “Não, isso é ficção, e nem sequer das mais convincentes. Não lembro bem, não lembraria o que disse o meu irmão – não posso lhe atribuir um discurso preciso demais, ou vago demais, um discurso extraviado no excesso ou na escassez de sentido” (FUKS, 2015, p. 99).
Em K. relato de uma busca, embora o narrador se apresente em terceira pessoa, seu discurso indireto livre manifesta com agudeza a consciência do protagonista. Aqui também o artifício ficcional para o tratamento de episódios traumáticos da história é colocado em questão: “Claro, as palavras sempre limitavam o que se queria dizer, mas não era esse o problema principal, seu bloqueio era moral, não era linguístico: estava errado fazer da tragédia de sua filha objeto de criação literária, nada podia estar mais errado” (KUCINSKI, 2014, p. 136).
Essa desconfiança, que mobiliza um debate sobre as relações entre ética e estética – debate que, convém ressaltar, se encontra no cerne deste projeto – também ricocheteia no romance HHhH, do escritor francês Laurent Binet. A história, cujo título corresponde às iniciais da frase Himmlers Hirn heiβt Heydrich (“o cérebro de Himmlers chama-se Heydrich”), é centrada na atuação de dois jovens, Jan Kubǐs e Jozef Gabčík, combatentes da resistência tchecoslovaca na Operação Antropoide, operação que ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial e que teve por finalidade assassinar o segundo homem da SS, Reinhardt Heindrich, um dos mais poderosos do exército de Hitler. O relato desse episódio é acompanhado do drama ético do narrador quanto à sua decisão de conferir um tratamento literário aos fatos históricos: “Para que alguma coisa penetre na memória, primeiro é preciso transformá-la em literatura. É feio, mas é assim” (BINET, 202012, p. 186). Essa condição inerente à preservação da memória confere à literatura, segundo o narrador de HHhH, um poder de pregnância e de afecção capaz de despertar, pela empatia, uma consciência ética no leitor. A esse respeito, pronuncia-se Jaime Ginzburg: “Textos literários podem motivar a empatia por parte do leitor para situações importantes em termos éticos” (GINZBURG, 2013, p. 24).
As reflexões sobre a ficção que permeiam essas obras de textualidade híbrida, obras que mesclam realidade e criação estética, acabam, por sua vez, repercutindo também no questionamento dirigido à própria “ficcionalidade” da historiografia. Afinal, tal como fazem os escritores, “os historiadores, em cada época, têm liberdade de recortar a história a seu modo [...], pois a história não possui articulação natural” (VEYNE, 2014, p. 28). Esse procedimento é, pois, comum às duas práticas discursivas. Todavia, como ressalva, Rancière:

Não se trata de dizer que tudo é ficção. Trata-se de constatar que a ficção da era estética definiu modelos de conexão entre apresentação dos fatos e formas de inteligibilidade que tornam indefinida a fronteira entre razão dos fatos e razão da ficção, e que esses modos de conexão foram retomados pelos historiadores e analistas da realidade social. Escrever a história e escrever histórias pertencem a um mesmo regime de verdade (RANCIÈRE, 2005, p. 58).

Por esse motivo, em que pesem as diferenças e especificidades de cada campo discurso – literatura e história –, a indagação sobre a ficcionalidade que recobre a escrita da história participará também das discussões a serem levadas a termo nesta pesquisa.

Starting date: 18/11/2022
Deadline (months): 48

Participants:

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Coordinator * FABÍOLA SIMÃO PADILHA TREFZGER
Student Doctorate * WEVERSON DADALTO
Student Doctorate * FRANCIELLI NOYA TOSO
Student Doctorate * LUZIMARA DE SOUZA CORDEIRO
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